12 de janeiro de 2011

Miguel Nicolelis - Fragmentos de uma entrevista

Miguel Nicolelis é um dos pesquisadores brasileiros de maior prestígio. Pioneiro nos estudos sobre interface cérebro-máquina, suas descobertas aparecem na lista das dez tecnologias que devem mudar o mundo, divulgada em 2001 pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). Em 2009, tornou-se o primeiro brasileiro a merecer uma capa da Science. Na quarta-feira, foi nomeado membro da Pontifícia Academia de Ciências, no Vaticano.

Para onde a neurociência deve nos levar nos próximos anos?No curto prazo, penso que as principais aplicações serão na medicina com novos métodos de reabilitação neurológica, para tratar condições como paralisia. No médio, chegarão as aplicações computacionais. Nossa relação com as máquinas será completamente diferente: não usaremos mais teclados, monitores, mouse… o computador convencional deixará de existir. Vamos submergir em sistemas virtuais e nos comunicaremos diretamente com eles.
No longo prazo, o corpo deixará de ser o fator limitante da nossa ação no mundo. Nossa mente poderá atuar com máquinas que estão à distância e operar dispositivos de proporções nanométricas ou gigantescas: de uma nave espacial a uma ferramenta que penetra no espaço entre duas células para corrigir um defeito. E, no longuíssimo prazo, a evolução humana vai se acelerar. Nosso cérebro roubará um pouco o controle que os genes têm hoje. Daqui a três meses, publicarei um livro em que comento estes temas.

Como andam suas linhas de pesquisa na medicina?Estamos avançando rapidamente no exoesqueleto (um dispositivo que dá sustentação ao corpo de uma pessoa paralisada e é capaz de mover-se obedecendo ao controle da mente). Está sendo desenvolvido na Alemanha. Para o treinamento dos pacientes, construímos salas virtuais onde pessoas paralisadas terão sua atividade cerebral registrada de forma não-invasiva por magneto-encefalógrafos. Vamos ver se elas aprendem a controlar com o pensamento os movimentos de um corpo virtual – um avatar que simula o exoesqueleto. Com uma pessoa tetraplégica será mais fácil, pois é justificável o uso de métodos invasivos como implantar os eletrodos dois milímetros e meio dentro do cérebro. As descobertas vitais já foram feitas. Nosso drama agora é engenharia e conseguir recursos para pagar um projeto que é o equivalente, na neurociência, a uma viagem à Lua.
Outra linha de pesquisa importante em medicina é Parkinson. No ano passado, publicamos um trabalho naScience. Estimulamos com eletricidade a medula espinhal de ratos com Parkinson e conseguimos reverter o congelamento motor característico da doença. Há um milhão de fibras na medula espinhal que sobem para o cérebro. Mandamos uma descarga de alta frequência que chega aos centros motores profundos do cérebro e faz com que eles saiam da sincronia absoluta característica da doença, pois estão todos disparando impulsos nervosos ao mesmo tempo, de um modo semelhante ao que ocorre em uma crise epiléptica. O sinal elétrico tem um efeito caótico que quebra a crise.
Também temos resultados preliminares em macacos obtidos aqui em Natal. Infelizmente, o Hospital Sírio-Libanês não quer continuar a parceria com nosso instituto. Por isso, procuramos outro hospital de grande porte, público ou privado, onde possamos realizar os testes clínicos, talvez já no próximo ano. Gostaria muito de marcar que a tradução dessa pesquisa para a prática clínica aconteceu aqui no Brasil, pois acredito que a Medicina brasileira é a melhor do mundo. Estou propondo uma nova teoria que vai provavelmente acabar com minha carreira (risos). Acredito que não há distinção entre doenças neurológicas e psiquiátricas: todas elas são doenças temporais, relacionadas ao tempo dos neurônios, ou seja, variantes epilépticas. A única doença do cérebro que existe realmente seria uma epilepsia. Já publicamos três trabalhos este ano com modelos de doenças ditas psiquiátricas e, em todas, encontramos uma assinatura temporal que permite classificá-las como distúrbios do tempo, epilépticos. A ideia surgiu quando vi os registros eletrofisiológicos de ratos com Parkinson e eles lembraram muito os registros de uma crise epiléptica central que conheci quando era estudante.

No médio prazo, ainda precisaremos dos nossos sentidos para dialogar com sistemas computacionais?Em breve, vamos publicar um trabalho descrevendo o envio do sinal de uma máquina diretamente ao tecido neural de um animal, sem mediação dos sentidos: na prática, criamos um sexto sentido. Vai ser uma novidade explosiva, mas não posso dar mais detalhes, pois o artigo ainda não foi publicado. A internet como conhecemos vai desaparecer. Teremos uma verdadeira rede cerebral. A comunicação não será mediada pela linguagem, que deixará de ser o principal canal de comunicação. Para entender isso, basta pensar que toda linguagem é um comportamento motor – como mexer o braço. Esse comportamento motor também poderá ser decodificado e transmitido. Grandes empresas – como Google, Intel, Microsoft – já tem suas divisões de interface cérebro-máquina.
Quais as implicações antropológicas e sociológicas no longo prazo?
Talvez o primeiro impacto será descobrir que somos todos muito parecidos: as pretensas diferenças entre grupos de seres humanos vão se reduzir pois todos perceberão que somos iguais. Costumo dizer que será a verdadeira libertação da mente do corpo, porque será ela quem determinará nosso alcance e potencial de ação na natureza. O corpo permanecerá para manter a mente viva, mas não precisará atuar fisicamente. Nossa mente cria as ferramentas e as absorve como extensão do nosso corpo. Agora, a mente vai controlar diretamente as ferramentas. O que definimos como ser mudará drasticamente no próximo século.

De que modo a evolução poderá ser influenciada pelo cérebro?O processo de seleção natural vai agir de uma forma muito mais rápida. Em um mundo onde as pessoas terão de atuar com a atenção dividida entre múltiplas ferramentas, os atributos evolucionais necessários para sobreviver mudam. A mente que consegue controlar vários processos de forma eficaz tem uma vantagem evolucional sobre as outras. Há uma base genética para essa facilidade. À medida que gente com essa vantagem se reproduz mais que os outros, ocorre seleção. Várias pessoas – como os biólogos evolucionistas Richard Dawkins e Stephen Jay Gould – previram que o cérebro passaria a ter um papel mais fundamental na evolução. Mas creio que estamos acelerando este papel. Os neandertais acordaram um dia e encontraram o Homo sapiens jogando bola na esquina da casa deles. Um dia, um sujeito pode acordar e se dar conta de que ele já não pertence mais à espécie dos pais. Mas estamos falando de milênios aqui.

Sua abordagem para criar uma interface cérebro-maquina foi listada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) como uma das dez tecnologias que vão mudar o mundo. Como ela surgiu?Nós – eu e o neurocientista John Chapin – elaboramos um experimento para contestar a doutrina neuronal dominante no século 20 – que rendeu vários prêmios Nobel. Esta teoria estabelecia o neurônio como unidade funcional do sistema nervoso. Nós provamos que a unidade funcional é uma população de células. Um neurônio isolado – que sozinho constitui, de fato, uma unidade anatômica e computacional – não consegue reunir informação suficiente para gerar comportamento, principal função do cérebro. No fim da década de 80, tivemos a ideia de ligar um cérebro de rato a um robô para mostrar que mesmo o neurônio mais fenomenal não gera movimento. Mas, quando registrávamos populações de cinquenta neurônios – mesmo escolhendo-os de forma aleatória -, o animal conseguia movimentar o braço mecânico como se fosse o seu próprio. Não esperávamos um impacto tão grande. Construímos o primeiro centro de neuroengenharia do mundo na Universidade Duke. Agora, qualquer oficina de fundo de quintal nos Estados Unidos tem um centro de neuroengenharia. Há uma explosão de iniciativas no mundo inteiro: Japão, Suíça, Brasil…

Quais os principais desafios para aprimorar essa tecnologia?Conseguimos registrar hoje cerca de 600 neurônios. Nos próximos dois anos, vamos chegar a 60 mil graças a uma inovadora tecnologia de eletrodos tridimensionais. De qualquer forma, é um método invasivo, o que restringe seu uso. Ninguém vai inserir eletrodos no cérebro para brincar com jogos na internet. Precisamos descobrir técnicas não-invasivas, mas que tenham a mesma resolução para registrar os neurônios.

O que é “registrar neurônios”?Colocamos eletrodos no cérebro e registramos a atividade elétrica dos neurônios. Se você colocar os dados obtidos pelos eletrodos em uma tela de computador, não vai entender nada. É como olhar um programa binário de computador. Há uma mensagem codificada ali, mas com um código que está mudando continuamente, pois o cérebro é um sistema auto-adaptativo: cada vez que você faz alguma coisa, ele muda. Precisávamos descobrir um modo de extrair a informação motora dessas salvas de eletricidade que são, na realidade, padrões espaço-temporais que variam com o tempo. De início, parecia ruído… em boa medida, porque é mesmo ruído Poisson, como costumamos chamar. Mas percebemos que, com métodos de regressão linear, conseguíamos obter a informação. A partir daí, deixamos o próprio cérebro atuar como nosso computador: ele resolvia o sistema de equações lineares e encontrava um equilíbrio ótimo que aproveitávamos para estabelecer a interface.

Alexandre Gonçalves, de O Estado de S. Paulo

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